Comunidade científica tenta determinar se algumas mutações do coronavírus facilitam as reinfecções
A expansão descontrolada da pandemia de covid-19 está facilitando a aparição de novas variantes do coronavírus que escapam parcialmente às defesas humanas. Já são cinco as vacinas que parecem ser menos eficazes contra a variante viral detectada pela primeira vez na África do Sul e já presente em 40 países, inclusive o Brasil. Na quarta-feira passada, médicos de um hospital francês comunicaram o primeiro caso confirmado de reinfecção grave por esta variante. As mais de 100 milhões de pessoas que já superaram a covid-19 e as cerca de 175 milhões que já foram vacinadas poderiam não estar totalmente protegidas conta as novas versões do coronavírus.
O caso francês é por enquanto pontual, mas inquietante. Um homem de 58 anos, asmático, teve uma covid-19 leve em setembro, com um pouco de febre e dificuldade respiratória. Em janeiro, precisou ser internado e intubado por uma reinfecção grave com a variante sul-africana, segundo seus médicos do Hospital Louis Mourier, em Colombes, nos arredores de Paris. Os próprios médicos salientam que foram confirmadas apenas três dezenas de reinfecções no mundo desde o início da pandemia, em sua maioria mais leves que a primeira infecção, embora alertem de que se trata de uma cifra “provavelmente subestimada”.
“Há provas convincentes de que já ter passado por uma infecção com o vírus original não protege da reinfecção com a variante B.1.351 [a detectada na África do Sul]”, alerta o médico Shabir Madhi, da Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo. Madhi dirigiu um ensaio da vacina do laboratório norte-americano Novavax que obteve resultados preliminares inesperados. Metade dos 4.400 participantes recebeu injeções de um placebo; 700 já tinham superado a covid-19 meses antes, previamente à aparição da nova variante sul-africana. A surpresa foi que, neste grupo de controle não imunizado, as pessoas que nunca tinham tido covid-19 e as que tinham passado pela doença se infectaram ou reinfectaram no mesmo ritmo, beirando os 4% em ambos os casos. “As infecções anteriores não protegeram contra a covid-19 produzida pela variante”, informou a Novavax em 2 de fevereiro. Madhi destaca que só foram observados casos leves ou moderados. “Talvez estejam protegidos contra a doença grave produzida pela variante”, sugere.
A vacina da Novavax é uma das cinco que mostraram indícios de serem menos eficazes contra a variante B.1.351. Teve 89% de eficácia em um ensaio no Reino Unido, mas apenas 60% na África do Sul. A injeção da também norte-americana Johnson & Johnson alcançou uma eficácia de 72% nos EUA, contra 57% na África do Sul. E o país africano suspendeu diretamente a administração da vacina de Oxford e da AstraZeneca após observar uma eficácia de apenas 22% em um ensaio preliminar.
Um pequeno estudo com 20 pessoas publicado na semana passada na revista Nature indica que as vacinas da Pfizer e Moderna também são ligeiramente menos efetivas frente aos vírus que contêm a mutação E484K, o que é o caso das variantes descobertas na África do Sul e em Manaus. “As mutações do vírus estão reduzindo a capacidade dos anticorpos de neutralizá-lo”, adverte o biólogo argentino Rafael Casellas, coautor do estudo.
“Há provas convincentes de que já ter passado por uma infecção com o vírus original não protege da reinfeção com a variante detectada na África do Sul”, adverte o médico Shabir Madhi
A boa notícia, magnífica, é que as vacinas, embora não impeçam todas as infecções, têm uma eficácia praticamente absoluta na hora de evitar os casos mais graves de covid-19. “A previsão é de que as vacinas atuais manterão as pessoas fora do hospital, mas ao mesmo tempo o vírus terá a capacidade de se reproduzir nos infectados de maneira que continue a se propagar na sociedade”, explica Casellas, chefe de um laboratório nos Institutos Nacionais da Saúde dos EUA. O pesquisador opina que será preciso atualizar periodicamente as vacinas contra a covid-19, a exemplo do que acontece com as da gripe.
Casellas acredita que as pessoas que já tiverem tido covid-19 e se reinfectarem com uma nova variante terão “poucos sintomas ou possivelmente nenhum”. O problema, salienta, é que, se o vírus continuar se espalhando entre os vacinados, será impossível chegar à imunidade coletiva. Com outros vírus, como o da pólio, é necessário vacinar 80% da população para alcançar essa imunidade dita de rebanho. Os demais 20% acabam protegidos também, de maneira indireta, porque o vírus para de circular entre os vacinados, que atuam de corta-fogo para os não vacinados. Se as novas variantes do coronavírus infectarem mais facilmente os indivíduos já imunizados, mesmo que de maneira assintomática, as pessoas que não se vacinarem não ficarão protegidas pelo fenômeno da imunidade coletiva. Além dos negacionistas da vacina, sairiam perdendo os cidadãos que não podem ser vacinados por serem alérgicos a algum componente do medicamento ou por alguma outra razão médica.
O biólogo Iñaki Comas, codiretor do consórcio espanhol que vigia os genomas do coronavírus, salienta que as reinfecções são difíceis de demonstrar. Poucos casos desse tipo foram publicados mundo afora. Em 18 de janeiro, por exemplo, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) anunciou a primeira reinfecção confirmada com a variante brasileira: uma mulher de 29 anos, moradora de Manaus, infectou-se em março de 2020 com o vírus clássico, e em dezembro com a nova variante, em ambos os casos com febre, tosse e poucos outros sintomas. Comas, do Instituto da Biomedicina de Valência (leste da Espanha), relembra que há pouquíssimos casos publicados. “Não sabemos qual é a realidade”, reconhece.
A terceira variante preocupante, além das detectadas na África do Sul e Manaus, é a que foi observada pela primeira vez no Reino Unido, supostamente uns 35% mais contagiosa. Uma equipe de pesquisadores do King’s College de Londres calculou que a taxa de reinfecção com esta nova variante quase não alcança 0,7%, uma cifra similar à estimada para as variantes clássicas. Os resultados, muito preliminares, procedem da análise dos dados fornecidos por 37.000 usuários de um aplicativo de celular criado para investigar os sintomas da covid-19.
Um estudo preliminar com 20.000 profissionais sanitários no Reino Unido sugeriu em janeiro que ter passado anteriormente pela covid-19 oferece uma proteção de 83% contra um novo contágio durante pelo menos cinco meses. A médica indiana Soumya Swaminathan, diretora científica da Organização Mundial da Saúde, recordou este dado na sexta-feira. A evidência científica disponível mostra que tanto as vacinas como as infecções prévias em geral protegem conta os casos graves de covid-19, esses que acabam em hospitalizações ou mortes, observou Swaminathan.
A virologista Theodora Hatziioannou, da Universidade Rockefeller (EUA), reconhece sua incerteza. “Não sabemos que níveis de anticorpos neutralizantes [gerados depois de uma primeira infecção] são necessários para deter a reinfecção. Dado que o ritmo de diminuição [dos anticorpos com o tempo] é extremamente variável entre um paciente recuperado e outro, eu assumiria que o risco de reinfecção também será variável”, argumenta. Hatziioannou, coautora do estudo publicado na Nature, insiste em que é necessário controlar a transmissão do coronavírus, sejam novas variantes ou não, e isso se consegue com as medidas de sempre, como as máscaras e a distância física.
“Nossos experimentos no laboratório não podem predizer o que acontecerá em relação às reinfecções”, admite o imunologista Michel Nussenzweig, também da Universidade Rockefeller. O pesquisador, não obstante, lança uma mensagem tranquilizadora: “Nossa previsão, baseada nos dados, é que as vacinas também moderarão os sintomas e os casos graves da doença produzidos pelas variantes, embora isto ainda tenha que ser demonstrado. E, o que é mais importante, as vacinas podem ser rapidamente modificadas para adaptá-las de maneira ideal às variantes”. Algumas empresas, como a Pfizer e a Moderna, já anunciaram que estão trabalhando em vacinas aperfeiçoadas para fazer frente às novas versões do coronavírus.
Informações do El País
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